As Chaves e as Portas

Desde que as primeiras denúncias feitas por Edward Snowden sobre os programas de espionagem da NSA foram divulgadas, vivemos sob uma sensação de constante fadiga de informação. A sucessão constante de denúncias sobre novas maneiras de monitoramento em massa feitas do recolhimento e processamento de dados (ou metadados, como preferem falsamente restringir as agências de segurança norte-americanas) nos forçou a manter uma atitude de descolamento da realidade. O sentimento é de conformidade: se não há nada a fazer contra os superpoderes tecnológicos, procuramos ignorar o tema e nos convencer de que nossas vidas são por demais banais para serem investigadas ou levadas a sério pelas autoridades. Afinal, “só aqueles que fazem algo errado têm algo a temer” é a justificativa mais conveniente.

Alguns críticos procuraram frisar algo real: as revelações de Snowden, embora importantíssimas e cruciais, estão longe de ser surpreendentes. Os EUA sempre espionaram, assim como outros países. Não há inocentes nesse jogo e qualquer vantagem conseguida a partir de potencial tecnológico é normalmente usada para manter a distância e segurança dos países. Esse argumento sempre me pareceu mais razoável: quando o relatório acusando a CIA de praticar tortura durante o governo Bush saiu, a imprensa norte-americana mostrou choque diante da suposta “novidade”: cidadãos/soldados norte-americanos torturando para obter informações como política declarada?? Qualquer latino-americano com um mínimo de informação histórica sabe que os americanos não só treinavam oficiais da região em técnicas de tortura nas décadas de 50, 60 e 70, mas também monitoravam e trocavam informações sobre a captura de “subversivos”. Nada novo aqui. Assim como as outras práticas da política, os EUA sempre foram tão realistas quanto os outros. O máximo que aconteceu após todas as revelações foi apenas o “fim da hipocrisia”, na expressão feliz de Henry Farrell e Martha Finnemore.

Embora o fato de não ser surpreendente o uso da tecnologia para esses fins, as notícias que continuam sendo divulgadas sobre a NSA/CIA continuam sendo brutais. Ontem, em um excelente artigo no The Intercept, Jeremy Scahill e Josh Begley explicam, a partir de documentos de Snowden, como as agências de segurança norte-americanas conseguiram roubar os códigos de criptografia da maior empresa fabricante de chips de telefonia, a Gemalto, que produz 2 bilhões de chips por ano. Em uma metáfora simplista, é como se a NSA e CIA tivessem roubado as chaves para todas as portas do mundo. Todas as informações de nossos telefones celulares, voluntárias ou não, são recolhidas e compiladas em um banco de dados grandioso e esses dados são constantemente minados para encontrar as mais diversas conexões possíveis. Para isso, as agências não precisam forçar as empresas de tecnologia a fornecer dados – esses dados são interceptados diretamente de seu telefone, todo o tempo, a qualquer hora.

Foi-se o tempo em que os dados que produzíamos eram apenas as nossas conversas telefônicas. Os celulares modernos são máquinas de rastreamento constante, assim como sensores apurados de monitoramento do corpo e do movimento. Eles transmitem onde estamos, com quem estamos e com quem queremos estar. Já é um meme comparar a vida atual com o 1984 de Orwell e, realmente, talvez a comparação não seja mesmo tão boa. O que mais me assusta é a compilação desses dados de forma personalizada e ao mesmo tempo de forma indiscriminada e controladora. É banal sabermos, por exemplo, que o Facebook conhece mais sobre cada indivíduo do que ele mesmo. Damos voluntariamente muitos de nossos dados porque percebemos ganhos com isso em conveniência, mas estamos longe de perceber o quanto somos ignorantes ao traçar a linha do que é permitido ou não. É como se fossemos o sapo na panela de fervura lenta, que só percebe que vai morrer quando é tarde demais.

Essa perda de controle sobre nossas vidas individuais não é algo apenas ligado à tecnologia. Em um livro maravilhoso, Rise of the Warrior Cop: The Militarization of America’s Police Forces, Radley Balko descreve exatamente o mesmo processo no que diz respeito à progressiva dessensibilização quanto ao papel que a polícia deve ter em nossas vidas cotidianas, por exemplo. É claro que o exemplo que ele dá é o norte-americano, mas poderíamos tranquilamente extrapolar o argumento: eu ainda me lembro da época em que os policiais do Rio de Janeiro andavam de uniformes azul claro (não pretos, como hoje) e portavam um revólver calibre 38 (e não fuzis – armas de guerra – para fora dos carros). O processo é o mesmo: cedemos aquilo em que acreditávamos por conveniência ou segurança. É não custa lembrar da famosa frase de Benjamin Franklin, profundamente sábia: “Aqueles que abrem mão da liberdade em troca de segurança não terão, ou merecem, nenhuma das duas.”

Estou muito longe de ser um ludita. Pelo contrário, sou um tremendo entusiasta das possibilidades do mundo moderno e de suas ferramentas. Mas achar que as soluções para um mundo melhor vem de uma aceitação acrítica das inovações tecnológicas é bastante ingênuo. E cada vez mais perigoso.

 
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Há 20 anos, estou dentro da Universidade sob diversas condições. Já fui aluno de graduação, mestrando (aqui e no exterior), doutorando (aqui e no exterior), professor horista, coordenador e professor de pós-graduação lato senso e... Continue →